sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Jornal Público: 'O que aprendemos em 2007 sobre nós próprios?'


Além do conhecimento da língua, e mesmo como ajuda para tal, é interessante sabermos cousas sobre Portugal e sobre a sociedade portuguesa. É típico do fim e do início do ano a difusom de reportagens jornalísticas que resumem os últimos 12 meses. O jornal português Público difundiu umha dessas reportagens sobre como o povo português é, segundo os estudos publicados em 2007. Lendo-o, aprendemos português e sabemos mais um bocado sobre Portugal. Advirto-vos que é bastante extenso.

O que aprendemos em 2007 sobre nós próprios?

31.12.2007, Pedro Mexia

Reunimos 50 estudos sobre os portugueses publicados nos últimos 365 dias. Uns dizem bem de nós, mas a maioria reitera a velha imagem de um país deprimido, infeliz, pobre e insatisfeito. Será que nós somos mesmo assim?

Passámos o ano a ouvir falar de estudos que dizem que os portugueses são isto ou aquilo. Uns dizem que as nossas crianças são estudiosas, que nunca publicámos tantos estudos científicos em revistas internacionais e que até sabemos onde depositar as pilhas usadas. Mas a maior parte dos inquéritos que chegaram até nós em 2007 funciona como um espelho cruel.

A crer nos seus números e resultados (sempre questionáveis, retratos mais ou menos precários de um todo difícil de fotografar), somos deprimidos, insatisfeitos, infelizes, medrosos, negligentes e desinteressados pela ciência. Estes estudos somos nós?

Não, não e não, diz Felisbela Lopes, directora do curso de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. A investigadora admite que sejamos um pouco isso - e aqui "isso" é a lista de 50 títulos (positivos, negativos ou nem uma coisa nem outra) de estudos publicados na imprensa portuguesa ao longo deste ano.

"Quando somos confrontados com este mosaico de títulos, percebemos o desenho global - mas, ao olhar de perto para as peças do mosaico, vemos que há muitas coisas que não encaixam", repara Felisbela Lopes. Os nossos alunos são estudiosos, mas são os que abandonam a escola mais cedo. Acedemos mais à Internet, mas a maioria das mensagens que recebemos é spam (correio electrónico indesejado). Vamos mais vezes ao médico do que o resto dos europeus, mas não lavamos as mãos antes de comer e temos vergonha de falar em cancro do colo-rectal. Há aqui qualquer coisa que não bate certo, demasiadas contradições.

"Esta é uma lista muito portuguesa", diz com certeza Paulo Cunha e Silva, programador cultural e professor da Universidade do Porto. Na opinião do ex-director do Instituto das Artes, esta compilação de estudos divulgados em 2007 "confirma mais uma vez a nossa natureza ciclotímica, estamos sempre a oscilar entre a euforia e a depressão - o que muda é o intervalo de tempo entre um estado e outro". Por exemplo: não investimos no futuro mas achamos que ele será melhor do que o dia de hoje, endividamo-nos e ficamos contentes com o nosso "presentinho" (que não é bem uma prenda, é mais um presente pequenino, ínfimo e, como tal, fugaz - amanhã regressa a "insatisfação absoluta").

Serão estes estudos uma radiografia fiel dos portugueses? "Não, isto é um retrato enviesado", diz o ilustrador Luís Afonso, que diariamente, no P2, sintetiza a realidade nacional nos diálogos do Bartoon.

Sim, mas se este retrato é enviesado, alguém sabe dizer onde é que se encontra um retrato fiel de uma nação? "Eu diria que não há retrato fiel dos portugueses, até porque os portugueses são muito difíceis de retratar, temos uma natureza muito contraditória, somos de altos e baixos, sofremos todos de doença bipolar", diz Luís Afonso. Bem, já temos um diagnóstico, ouçamos agora a opinião de outros especialistas.

(Antes de avançarmos, um parêntesis: é incrível como as pessoas não resistem a falar em diagnósticos, doenças e problemas de identidade quando o assunto é Portugal. Abordámos cinco especialistas com uma lista de estudos na mão e uma pergunta na algibeira: o que é que os portugueses aprenderam sobre si próprios em 2007? Durante as entrevistas, o verbo "aprender" foi rapidamente ultrapassado por palavras do foro clínico ou psicanalítico. Falou-se mais em problemas do que tratamentos ou virtudes. Só mesmo Carlos Liz, especialista da Área de Planeamento e Estudos de Mercado/APEME, adiantou um prognóstico optimista).

Diagnóstico do país

No seu livro Portugal no Hospital - identidades, instabilidades e outras crises (Quasi Edições, 2007), Paulo Cunha e Silva toma o pulso à nação: "O diagnóstico é mau, a terapêutica é violenta e o prognóstico é reservado. O doente chama-se Portugal. Patologistas famosos, como Antero de Quental, António Sérgio ou Eduardo Lourenço, tentaram compreender o quadro clínico, que aponta para uma síndrome de decadência e de falência da auto-estima persistente. Perdido no labirinto da saudade, Portugal é, por definição, um país adiado. Um doente que passa de médico em médico, à procura de uma explicação plausível para a sua situação."

Custa ler um relatório clínico destes. Sobretudo porque foi escrito por alguém licenciado em Medicina (sim, Paulo Cunha e Silva é médico de formação, tendo migrado depois para as ciências do desporto e artes). Custa também porque o diagnóstico parece actual, mesmo tendo sido feito há cinco anos (e publicado em 2002 na sua coluna no Diário de Notícias). Será que tudo permanece (mais ou menos) na mesma? Será que é por isso difícil falar em aprender algo sobre nós próprios? Será que já conhecíamos a maioria das conclusões destes estudos?

Sim para as três perguntas, responde Luís Afonso. "Estes estudos são cíclicos, volta e meia reaparecem. E os resultados são parecidos, basta ver o estudo que diz que os portugueses são mais produtivos no Luxemburgo do que em Portugal. Há uns cinco anos houve um estudo idêntico, continuamos um bocado iguais", diz o ilustrador. O seu Bartoon é a prova: um cartoon publicado a 27 de Outubro de 2002 trazia a seguinte conversa de bar: "Os portugueses são bastante produtivos, não se dão é com este clima..."

Dados compilados pelo Eurostat, e divulgados este ano, indicam que os portugueses são 2,7 vezes mais produtivos no Luxemburgo. Nesse mesmo ranking, contudo, Portugal ocupa a 39ª posição, apresentando níveis de produtividade 40 por cento abaixo da média europeia. Já o Luxemburgo - para onde, só no ano passado, mais de oito mil portugueses emigraram - está na quarta posição e revela níveis 66 por cento acima da média.

"Precisamos de estímulo e vigilância para produzir, não somos pró-activos", conclui Paulo Cunha e Silva, dizendo "mata". Luís Afonso vem em seguida e grita "esfola": "É típico em nós, somos trabalhadores excelentes no estrangeiro e queremos juntar dinheiro no estrangeiro para voltar e montar aqui negócios obsoletos, um cafezinho no rés-do-chão."

Ainda no que toca ao trabalho, Felisbela Lopes sublinha mais uma contradição: preferimos trabalhar por conta própria, mas estamos entre os trabalhadores que mais dias faltam. Como é que seria a empresa do português absentista? "Se calhar até funcionaria, pois as pessoas aqui efectivamente trabalham mais por conta própria do que por conta de outrem", acredita Luís Afonso. O cartoonista conhece casos de indivíduos que só começaram realmente a trabalhar após a reforma (antes, "trabalhavam" para o Estado).

"As pessoas não querem trabalhar para o Estado, tendem a produzir mais quando há um patrão a quem possam identificar o rosto. A ideia de que estamos a trabalhar para aquele tipo ou para a família daquele tipo é algo mais concreto. Mas... e o Estado? Quem é concretamente o Estado? Não conseguimos vê-lo, por isso a lógica é sacar ao máximo, embora obviamente haja várias excepções", diz Luís Afonso.

O filósofo Paulo Tunhas, professor e co-autor, com Fernando Gil e Danièle Cohn, de Impasses (Europa-América, 2003), acredita que os portugueses não são diferentes de quem quer que seja - excepto pela falta de dinheiro e "paixão pela autognose" (adoramos saber quem somos, embora não saibamos muito bem o que fazer com isso depois). Será daí, aliás, que vem a nossa paixão por estudos que nos classificam, medem e comparam com Espanha e o resto da Europa. Para Tunhas, isto tem a ver com "algum sentimento de insegurança", as pessoas querem encontrar um traço geral que as defina, uma espécie de "espelho mágico que lhes mostra imediatamente a sua própria imagem". Em síntese: um narcisismo retorcido.

"Tenho a impressão de que o grosso das respostas que vemos aqui não seria muito diferente na Inglaterra. Se calhar, o nosso traço mais distintivo é o de sentirmo-nos muito inseguros - e com razão, diga-se de passagem. Descontando as coisas especificamente culturais, creio que o essencial tem, pouco originalmente, a ver com a falta relativa de dinheiro. A falta de dinheiro traz consigo menos liberdade e, concomitantemente, mais medo. Um medo, de resto, perfeitamente razoável e quase racional", observa Paulo Tunhas, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Fernando Pessoa, no Porto.

Não é à toa que alguns dos autores de filosofia mais badalados no país se debruçaram sobre... os portugueses. Depois de O Labirinto da Saudade (Gradiva, 2000), de Eduardo Lourenço, houve o best-seller recente Portugal, Hoje - O Medo de Existir (Relógio d"Agua, 2005) de José Gil. "Não encontro nenhuma situação equivalente na Europa. Os filósofos europeus concentram-se em problemas especificamente filosóficos", nota Paulo Tunhas, que escreveu a sua tese de doutoramento em Paris sob a orientação de Fernando Gil (irmão de José Gil).

E depois do "medo" e da "saudade", vem o atraso. Parece que temos uma "obsessão" por avaliar atrasos e adiantos - é o estar na cauda da Europa, é o ter a primeira (ou maior) coisa da Europa. E é também chegar atrasado, ou seja, depois do horário combinado. E isso também diz muito de nós próprios, assegura Paulo Tunhas, para quem "o atraso goza de uma perfeita legitimidade na imagem que os portugueses têm de si mesmos".

O negativo é notícia

Há, contudo, outras explicações possíveis para a discrepância, ambiguidade ou contradição que encontramos na lista dos estudos publicados em 2007. Uma delas é, para Felisbela Lopes, o facto de estarmos a colocar no mesmo saco coisas diferentes. "É importante também perceber a natureza destes estudos. Quem os faz? Com que amostras e metodologia? Um estudo não é uma sondagem, por exemplo. Quando vemos estes títulos todos reunidos, temos de ter em conta que não podemos comparar o incomparável", avisa a docente da Universidade do Minho.

Também não se pode esquecer como é que estes estudos chegam até nós. Nem todos os estudos que incluem indicadores portugueses são divulgados na imprensa. E os que são publicados têm direito a espaços e títulos distintos. "O discurso jornalístico tende mais a sublinhar os aspectos negativos, é aquilo que corre mal que foge à normalidade - e, por isso mesmo, é notícia", diz a professora. Isto talvez explique por que razão haja mais títulos sobre o lado pior dos portugueses do que sobre o lado melhor.

Além disso, "os números são muito apetecíveis", dão óptimos títulos nos jornais, recorda a investigadora em Ciências da Comunicação. Isto não constituiria um problema, na opinião de Felisbela Lopes, caso a abundância de estudos e inquéritos na imprensa não significasse uma diminuição do espaço dedicado à reportagem. Os estudos passam a ser, de alguma forma, uma opção mais económica para representar a realidade.

"Há uma diminuição deste género nas páginas dos diários e semanários, uma vez que a reportagem implica muitos meios - um repórter e um fotojornalista na rua durante pelo menos um dia - e as empresas de comunicação social estão a reduzir ao máximo os custos. É muito mais cómodo e barato usar os dados do Eurobarómetro para fazer um texto sobre os portugueses, resolve-se aquilo numa tarde e usa-se uma foto de arquivo", diz Felisbela Lopes.

Luís Afonso concorda que, nos últimos dez anos, o espaço editorial reservado às reportagens foi definhando. Não é que ele não goste de estudos - muito pelo contrário, os inquéritos são "uma excelente inspiração" para o Bartoon, a "papinha está ali toda feita", muitas vezes a informação até rende para três dias seguidos de cartoons. O problema, na sua opinião, é que a sociedade portuguesa passou a ser cada vez mais representada por estudos, uma vez que "o que é visto como uma verdadeira reportagem é fotografar como vive uma família pobre na Nigéria". Nessa lógica, as vidas das famílias pobres do Minho ao Algarve podem muito bem chegar ao leitor através de um inquérito nacional.

Fase de transição

Mas há mais explicações possíveis para as contradições. Carlos Liz, profissional de estudos de mercado da APEME, atribui a "discrepância" entre os títulos dos estudos à "fase de transição" por que passa a sociedade portuguesa. Um período de mudança que está a provocar alterações no nosso modelo económico, social, político e cultural.

"Os portugueses estão a transitar de uma sociedade antiga para uma moderna - há aqui a ideia de uma modernidade inacabada. Como refere [o sociólogo espanhol Manuel] Castells, estamos a entrar numa sociedade em rede ao mesmo tempo em que abandonamos a sociedade industrial", teoriza Carlos Liz. Quer isto dizer que os ciclos são mais curtos, as coisas aparecem e desaparecem muito rapidamente, as pessoas querem experimentar coisas diferentes o tempo todo - e a palavra-chave desta ânsia de viver é "saúde". Precisam de saúde para viver estas experiências.

Talvez por isso tenhamos o costume de ir mais ao médico - se calhar, especula Carlos Liz, isto já é o reflexo do aumento do consumo de seguros de saúde em Portugal. Como o valor da mensalidade é mais ou menos o mesmo, as pessoas tendem mais a levar aos consultórios problemas menos prementes. Pode ser a caspa persistente ou o ranger dos dentes ao dormir.

"Não se percebe muito vem o que vem a seguir [à fase actual], mas esta transição explica por que é que os resultados são tão discrepantes", teoriza Carlos Liz. Mas seja o que for que temos pela frente, não é necessariamente mau. O especialista da APEME, que faz estudos empíricos há cerca de 35 anos, acompanhou a evolução da sociedade portuguesa desde a Revolução dos Cravos e garante que não há razões para o pessimismo.

Na sua opinião, "estamos nas vésperas de um Portugal diferente". Os portugueses estão a aprender a contar cada vez mais consigo próprios e com o seu grupo social de proximidade. Há uma "grande descrença" no poder político, as pessoas estão a aprender que não vale a pena esperar do Governo a solução para os problemas. Só que isto é um processo, sublinha Carlos Liz, e nós estamos ainda a meio da ponte. Como a travessia ainda não acabou, temos a sensação de coisas que se chocam, que não fazem sentido lado a lado mas que coabitam sob um tecto de estupefacção.

"Vejo um conceito de normalização da vida portuguesa - e nesse processo há mais actores sociais a olhar para novos actores sociais, as pessoas descobriram, por exemplo, que têm de cumprir os seus deveres fiscais. Isto é uma coisa nova e positiva", exemplifica. Quando espreitamos a nossa lista de estudos divulgados em 2007, encontramos apenas uma referência à fiscalidade: Portugal é o segundo país da União Europeia que mais desconfia de corrupção no fisco. Mas a verdade é que, este ano, o Estado arrecadou mais receitas fiscais do que no ano passado.

Também lemos mais - já somos três milhões a abraçar os livros, mesmo que muitos sejam de qualidade duvidosa, nota Paulo Cunha e Silva - e adoptamos definitivamente a Internet. É certo que quem está ligado à rede não está necessariamente a ler sobre a evolução dos medicamentos durante a II Guerra Mundial ou a estudar as controvérsias que existem sobre a evolução dos vertebrados. "Recebemos muito lixo electrónico e visitamos sítios pornográficos", recorda Felisbela Lopes. E Luís Afonso acrescenta que há em Portugal uma cultura da Internet associada à diversão.

"Usamos mesmo como entretenimento - e disso não vem nenhum mal ao mundo, mas é preciso ter cuidado ao ver a Internet como indicador de desenvolvimento. Basta ver a velocidade de acesso na Internet: durante o dia, as pessoas mandam mensagens parvas umas às outras; quando saem dos serviços, usam com muita parcimónia [a rede] nas suas casas. As pessoas são muito tecnológicas, mas em que é que isso exactamente se traduz em termos de avanços na sociedade é discutível. Mas não acho mal nenhum que se divirtam", diz o autor do Bartoon.

Estudos na gaveta

Feito o diagnóstico, convém saber o que é que fazemos com ele. Sim, o que é que fazemos com tanta informação sobre nós próprios? Servem estes estudos como base para a tomada de decisões políticas? Para o desenho de medidas estratégicas que saiam de facto do papel? Paulo Cunha e Silva acha que não. "Somos o país das comissões de inquérito. Adoramos estudos, mas as suas conclusões raramente são aplicadas. Creio que os nossos estudos são a oportunidade que temos para empregar um conjunto de supostos amigos", acredita o ex-programador do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, que preparou para 2008 um ciclo de debates na Fundação de Serralves chamado, não por acaso, Portugal: Sim ou Não?

Luís Afonso concorda com Paulo Cunha e Silva: "Fazemos tantos estudos porque é preciso ocupar as catrefadas de consultores que estão nas empresas e nos escritórios."

Todo este retrato deprimido, infeliz e sombrio do país parece destoar com a mensagem de Natal do primeiro-ministro José Sócrates. Há uma semana, o chefe de Governo mostrou-se confiante no seu discurso, assegurou que em 2008 Portugal estará bem preparado para "enfrentar os desafios e as incertezas da economia global". Celebrou o défice abaixo dos três por cento e lamentou que a queda do desemprego tivesse ficado aquém do prometido em campanha eleitoral. Deveríamos estar eufóricos?

"Claro que não. O primeiro-ministro tem sempre de ser o optimista de serviço, mas todos nós sabemos que a economia cresceu um pouco mas não tanto como devia crescer", diz Cunha e Silva. São paliativos, fenómenos epidérmicos, a exemplo das cimeiras da presidência portuguesa. "Sabemos que o Tratado de Lisboa já estava feito [por Angela Merkel] e que a cimeira União Europeia - África foi um encontro social. Somos um país que tem de ser empurrado e, mesmo assim, desloca-se de forma paquidérmica. Somos muito sensíveis à inércia", conclui. Talvez seja por isso que, para nós, portugueses, seja tão difícil descobrir o que aprendemos sobre nós este ano. "Estamos no mesmo sítio."

a Serei português? Se nasci aqui e a insigne República Portuguesa me concedeu os seus papéis é porque sou inquestionavelmente cidadão nacional. E no entanto estou sempre a encontrar "factos" sobre "os portugueses" que não têm nada a ver comigo nem com as pessoas que conheço. Quem são "os portugueses"? E o que são "factos"? Desculpem a filosofice, mas a estatística desperta sempre a minha costela de Wittgenstein da Estefânia.

Esta edição do P2 pergunta "o que aprendemos sobre nós próprios" em 2007. Eu aprendi muitas coisas sobre mim próprio em 2007, mas não as vejo reflectidas nas conclusões aqui compiladas. Serei português? Ou tudo se justifica pela velha ideia de que se o meu vizinho comprou dois rabanetes e eu nenhum, então cada um de nós comprou um rabanete? Questões graves, como se vê.

Há uma coisa em que eu sou um lusitano chapado: na ciclotimia. Todos os estudos sobre os portugueses indicam que nos achamos magníficos ou abaixo de cão conforme os dias da semana. E eu de facto passo o tempo a achar que sou razoavelzinho ou inenarrável (achei que era magnífico umas três vezes na vida, mas foi um lapso, aliás desculpável). Os números sobre os portugueses asseguram que somos estudiosos, ecológicos, poupados, cibernautas e temperamentais. Mais do que ser ou não português, aqui fico na dúvida se vivo mesmo em Portugal: conheço pouca gente estudiosa, ecológica e poupada (eu certamente não sou); e se convivo com muitos cibernautas é por causa da blogosfera, que não é exemplo fiável. Quanto a "temperamental" ser uma vantagem, duvido. E nem me identifico: os meus amigos dizem que eu nisso sou "sueco".

Os aspectos negativos que aqui lemos são cinema português do mais miserabilista: somos infelizes, pobres, doentes, porcos, corruptos, sexualmente irresponsáveis, viciados no jogo e no álcool. E temos medo, muito medo, medo de perigos concretos ou imaginários. Mesmo com alguns exageros (acho que eles conduzem estes inquéritos em festivais de reggae), aceito mais facilmente este retrato. Porque sou um pessimista encartado ou porque os aspectos negativos são mais reais que os positivos? Digamos que o sucesso de três décadas democráticas não apagou os traços negros da nossa personalidade ancestral, a ponto de ficarmos com dúvidas sobre se seremos imunes ao progresso. É como se Portugal mudasse nos números mas não mudasse na sua essência vil e apagada. É talvez o paradoxo mais inquietante da vida portuguesa, como têm lamentado incontáveis intelectuais estrangeirados.

Acrescento que alguns aspectos sombrios aqui referidos têm a sua graça, como convém a um povo tragicómico. Parece que "não sabemos quantos países tem a UE" (com os alargamentos fica difícil) e que "a maioria dos mails que recebemos são spam" (chorai arcadas despedaçadas dos violoncelos). Além disso, "falar de cancro colo-rectal ainda é tabu" (com efeito, não foi um tema muito glosado na ceia de Natal).

Mas eis a asserção que mais me apoquenta: "O ideal é não ter barba." Se isto é a opinião dos portugueses, tanto me faz. Se é a opinião das portuguesas, então em 2008 vou para a Suécia. Ou ao barbeiro.

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